Luta Coletiva: UNICAB (Brasil)

By StreetNet International
March 29, 2021
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“Enfrentar, resistir e persistir”

A União Nacional de Trabalhadores e Trabalhadores Camelôs, Ambulantes e Feirantes do Brasil– UNICAB foi fundade em julho de 2015, depois de vários anos de luta de diversos militantes em várias cidades brasileiras. Para percebermos como a organização foi criada e de que forma impulsionou a luta dos vendedores ambulantes no Brasil, falámos com os membros da Executiva eleitos no Congresso de 2019 Juliano Fripp e Maria de Lourdes do Carmo (também conhecida por Maria dos Camelôs), de forma a partilhar a sua perspetiva sobre a evolução da UNICAB e da luta coletiva para defender os direitos dos camelôs, ambulantes e feirantes no Brasil.

A mobilização em torno da Copa do Mundo 2014

A criação da UNICAB foi impulsionada pela Copa do Mundo no Brasil, em 2014. A partir do momento em que o país foi escolhido para receber esse megaevento internacional, os movimentos sociais no Brasil e no mundo começaram a preparar-se para impedir que se repetissem os abusos que tiveram lugar noutros países. Tal como explica Juliano, “Quando há uma Copa do Mundo, os políticos tentam esconder aquilo que é feio para turista, bota em baixo do tapete, para mostrar uma cidade linda e maravilhosa. No Brasil, não foi diferente. Tentaram esconder as pessoas moradoras de rua, e de camelôs e ambulantes nem se fala”.

Para a StreetNet, este tipo de megaeventos internacionais já tinham sido identificados há muito como um risco acrescido para os direitos dos vendedores ambulantes. Por isso, antes da Copa do Mundo na África do Sul em 2010, a StreetNet tinha desenvolvido a campanha World Class Cities for All, para impedir que as preparações para a Copa prejudicassem os vendedores ambulantes e o seu direito ao trabalho.

A campanha foi então replicada no Brasil, a partir de 2011. A atual Organizadora da região das Américas, Maíra Vannuchi, começou a trabalhar enquanto representante da StreetNet no país, reunindo com vários ativistas pelos direitos dos camelôs, ambulantes e feirantes, e estabelecendo uma rede de contactos entre vários focos de luta que estavam dispersos até então. A articulação nacional de lideranças ambulantes das cidades sede resultou em um  documento “Copa do Mundo para Todos – O retrato dos vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014”, publicado em uma reportagem  https://apublica.org/2012/04/copa-nao-e-para-pobre-os-ambulantes-zonas-de-exclusao-da-fifa/ e em um encontro nacional na sede da Central Sindical das Americas – CSA (TUCA) em São Paulo para enviar à FIFA uma carta nacional http://streetnet-campaigns.blogspot.com/2011/10/brasil-outra-copa-do-mundo-e-possivel.html l

“A UNICAB nasceu de verdade em 2013, antes da Copa do Mundo, quando houve uma grande movimentação através da StreetNet” recorda Juliano. “Pessoas de diferentes Estados foram encorajadas a conhecer outras envolvidas na luta dos vendedores ambulantes e feirantes em cada capital do Brasil. E isso fortaleceu muito o movimento”.

Militantes do Rio Grande do Sul tal como Juliano, por exemplo, foram visitar companheiros ao Rio de Janeiro e vice-versa, no que chamamos na StreetNet de visita de intercâmbio. Esta aproximação permitiu compreender as semelhanças entre as várias lutas travadas por vendedores ambulantes em diversos pontos do Brasil.

“Quando a gente começou a conversar, sentiu a necessidade de organizar um movimento nacional para dar conta das demandas dos camelôs, fazer essa representação nacional. E a gente cria a UNICAB.” resume Maria “Foi uma construção de militantes de vários Estados. Porque a gente precisava desse guarda-chuva nacional para fazer a defesa dos trabalhadores informais, dos camelôs e dos feirantes ambulantes das cidades”.

A articulação entre diversos movimentos e a mobilização a nível nacional deu logo frutos a nível local. Juliano sublinha o Corredor da Copa em Porto Alegre, um espaço disponibilizado a vendedores ambulantes para trabalhar que ia desde o Estádio de Porto Alegre até ao centro histórico da cidade, como uma conquista importante. Sucessos semelhantes foram alcançados noutras cidades através da luta de movimentos locais, apoiada por outros a nível nacional.

No entanto, esta mobilização não teria sido possível sem o trabalho prévio de militantes. Como explica Juliano, “o trabalho de mobilização, o trabalho de luta, não começou com a StreetNet nem com a UNICAB. Começou antes. Eu trabalho na rua desde 1990. Em 2001, criámos a Associação Feira Rua da Praia – ASFERAP, a primeira associação focada nesta classe no Estado de Rio Grande do Sul. Ou seja, as mobilizações começaram há muitos anos atrás. E continuaram depois da Copa do Mundo.”

Também o Movimento Unidos dos Camelôs (MUCA), foi criado vários anos antes da Copa do Mundo por um grupo de ambulantes liderados por Maria em julho de 2003, como resposta a uma agressão que sofreu enquanto estava grávida por parte da Guarda Municipal do Rio de Janeiro.

A aproximação de vários movimentos dispersos permitiu identificar desafios e prioridades comuns. Um dos exemplos apontado por Juliano é a questão dos camelódromo, recintos fechados criados por autoridades municipais para vendedores ambulantes. Embora projetos de camelódromos tenham sido apoiados inicialmente por movimentos de vendedores, como foi o caso em Porto Alegre em que a ASFERAP negociou e apoiou a criação de um camelódromo na cidade em 2009, a cedência deste espaço a gestão privada no ano seguinte acabou por resultar na expulsão de vários vendedores por não conseguirem pagar as rendas. Dos oitocentos vendedores ambulantes instalados no primeiro ano, apenas cem conseguiram manter as lojas até hoje, enquanto que o resto do espaço é ocupado por pequenos empresários. “A luta é intensa. Agora, esses 700 vendedores que saíram do camelódromo voltaram para rua” explica Juliano. A rua é perigosa porque “volta e meia, a polícia vem e apreende, bate, rouba mercadoria. Então, a luta que se segue para a gente é poder regulamentar minimamente a questão do trabalho informal em Portalegre. Lá a Maria do Rio, no Recife também, em Sao Paulo, em Paraíba, todos fazem esta luta, que é a mesma. É a luta do direito à cidade, do direito ao trabalho.”

À medida que a UNICAB se posiciona em várias combates, a organização vai crescendo cada vez e conseguindo afirmar-se como uma força política. Para Maria, a própria criação da organização como uma frente unida de vários movimentos é a maior conquista.

A afirmação política de vendedores ambulantes, camelôs e feirantes no Brasil

A criação da UNICAB enquanto uma entidade nacional representativa dos vendedores ambulantes, camelôs e feirantes no Brasil foi determinante para a afirmação política e reconhecimento destes trabalhadores.

“Em qualquer lugar na defesa dessas lutas, a gente se diz representate da UNICAB, e isso dá um peso muito forte quando você está na Câmara dos Vereadores, ou está em frente do Prefeito, ou está à frente do Governador. Não, nós somos representantes de uma entidade nacional” diz Juliano.

Apesar da distância entre as várias organizações que compõem a UNICAB, os seus membros interagem regularmente e coordenam ações. Esta articulação favorece tanto a UNICAB enquanto entidade nacional, mas também fortalece os movimentos locais. Um exemplo da excelente dinâmica local/nacional que a UNICAB conseguiu desenvolver é a resposta rápida que conseguiram dar enquanto organização aos desafios da pandemia COVID-19.

“Quando estorou a pandemia, a preocupaçao foi imediata. Como ficam os trabalhadores informais?” recorda Juliano, que com o grupo da UNICAB e diversos movimento sociais e sindicais fez pressão com deputados federais aliados de forma que foi conquistado um projeto de renda básica emergencial do governo federal no Congresso Nacional.

A proposta inicial era de uma renda de 1000 reais contra a proposta de 200 reais do Presidente Jair Bolsonaro. O acordo final fixou uma renda emergencial de 600 reais durante seis meses, que foram depois prolongados até Dezembro de 2020. “Não foram 1000  reais, mas a renda básica emergencial mudou completamente a situação. E essa foi uma luta nossa, uma luta articulada, em que entrou todo o mundo de trabalhadores informais. É um legado que a gente vai deixar para a história”, afirma Juliano.

Além de terem alcançado a política de renda básica emergencial (pode consultar mais informação sobre a mesma neste artigo) a UNICAB conseguiu ainda reunir as assinaturas necessárias de deputados federais para criar uma Frente Parlamentar em defesa dos vendedores ambulantes no Congresso Nacional do Brasil. Pela primeira vez na história, esta categoria de trabalhadores estará representada na mais alta esfera do poder político a nível nacional. “A Frente Parlamentar é uma conquista que vai mudar muito a nossa relação com os governos porque vamos ter vários deputados de vários estados defendendo o trabalho dos camelôs, ambulantes e feirantes” reitera Juliano “É um legado impressionante”.

O que distingue a luta coletiva no Brasil de outros contextos

Para uma organização criada há menos de dez anos atrás, a UNICAB alcançou conquistas importantes muito rapidamente, especialmente tendo em conta o contexto político desfavorável com o Presidente Jair Bolsonaro no poder, com um governo hostil à luta de trabalhadores e de movimentos sociais.

Na perspetiva de Juliano, um aspeto que poderá distinguir a luta coletiva de vendedores ambulantes no Brasil de outros contextos é a abordagem política da UNICAB. Apesar de ser uma organização apartidária, possui uma orientação política de esquerda muito clara. E não tem medo de se envolver na política partidária para fazer avançar a sua agenda.

“Muitos movimentos são contrários à participação de vereadores e deputados, por ignorância. Mas a gente sempre levou atrelado. Não sei se isso é um diferencial do Brasil, mas pode ser. A gente tem uma relação com os partidos de esquerda e a gente criou um respeito, temos respeito por eles e eles por nós. É uma via dupla, eles ajudam a gente quando estão no poder e nós ajudamos eles a se reelegerem novamente. Essa relação e muito boa. E faz um diferencial, em todos os estados” explica Juliano.

No entanto, outro aspecto talvez mais inovador é encorajar os próprios vendedores ambulantes, camelôs e feirantes a apresentarem-se como candidatos a eleições políticas a nível local. Nas eleições municipais do Brasil em novembro de 2020, vários membros da UNICAB eram candidatos a vereadores. “Por exemplo, a Maria foi candidata no Rio, João Batista foi candidato em Sapucaia do Sul, Jaque da Tinga em Porto Alegre, Belloto no Recife” diz Juliano. Apesar da votação não ser suficiente para ser eleito, a presença destes candidatos fez com que os direitos dos vendedores ambulantes fizessem parte da agenda das eleições. “Quando os candidatos e candidatas aparecem elas na TV defendendo os ambulantes, isso pauta a sociedade” reforça Juliano.

A UNICAB tem ainda uma liderança de mulheres muito forte, ao contrário do que acontece em alguns países. “A UNICAB é composta na maioria da executiva por mulheres” diz Maria “Temos essa causa dentro da nossa carta de princípios, entao as mulheres estão na frente desse processo. As mulheres conseguem impor-se, colocar suas demandas, agonias”. Muitas destas mulheres são líderes a nível local ou estadual nas suas próprias organizações e, na perpetiva de Maria, já vêm formadas para participar no debate político. “A gente se impõe, é respeitada, são pessoas com consciência política”, acrescenta.

Outra questão que diferencia o contexto brasileiro de outros países é a relação com o movimento mais abrangente pela defesa dos trabalhadores da economia informal. Enquanto que noutros países a união destes trabalhadores faz a força, Juliano sublinha que os vendedores ambulantes, camelôs e feirantes são o único grupo ainda sem qualquer tipo de regulamentação, seja a nível municipal, estadual ou nacional. “Temos de aproximar, sim, mas a nossa luta tem que ser diferenciada” afirma Juliano.

Além deste aspeto, enquanto que noutros países as organizações de vendedores ambulantes se estabeleceram enquanto sindicatos, tal não é uma prioridade para a UNICAB. No entanto, mantém relações fortes com a  Central Única dos Trabalhadores – CUT. “Está existindo uma aproximação muito interessante” diz Juliano “Só não podemos perder a autonomia, jamais”.

A relação entre a UNICAB e a StreetNet

Uma vez que a StreetNet teve um papel mobilizador para a criação da UNICAB, as duas organizações têm uma relação muito forte. Juliano é o atual representate da UNICAB nas estruturas internas da StreetNet e faz questão que esta afiliação seja conhecida pelas autoridades públicas.

“Quando a gente se apresenta, eu falo sobre a UNICAB e também levo o nome da StreetNet. E quando digo que tem uma entidade internacional, as pessoas tremem.” diz Juliano sobre a sua experiência ao negociar com autoridades públicas “O facto de estamos afiliados é o grande diferencial, e que fez a gente crescer”.

Para além das credenciais internacionais, Juliano reconhece também a contribuição essencial da StreetNet para as lutas nacionais. “A Streetnet conquistou para nós a Resolução 204 na OIT” menciona, como exemplo. Além disso, considera os cursos de formação organizados pela StreetNet e o apoio contínuo muito importante. “A StreetNet viu que pode e deve ajudar mais o nosso movimento. Porque do momento que a UNICAB cresce, a StreetNet cresce também. Então é uma junção que é a mistura perfeita para esse movimento crescer cada vez mais”.

A UNICAB pertence à região das Américas nas estruturas internas da StreetNet, e por isso Juliano enquanto representante está constantemente em contacto com outros companheiros e companheiras da América Latina. “Houve e há reuniões e debates saudáveis e democráticos e trocas de experiências pela América Latina fora”, afirma.

Boas práticas da luta coletiva da UNICAB para outras organizações de ambulantes

Sendo a UNICAB uma organização que conseguiu afirmar-se de uma forma tão forte num curto período de tempo, perguntámos a Maria e Juliano se teriam conselhos para outros ativistas que estão neste momento a fazer as suas próprias lutas coletivas.

Maria sugere que “se busque a unidade e mostrar confiança para esta categoria de trabalhadores. Ser muito correto, muito honesto, e estar junto com o povo na rua, estar sentindo na pele o que essas pessoas passam. Buscar parceria com outras pessoas e entidades também é muito importante. Porque isso te dá uma força de luta, você não se sente sozinho. Reunir a população, reunir trabalhadores e fazer pressão no poder polítco, tanto a nível municipal como estadual e federal. Essa pressão no poder público é muito importante”.

Já para Juliano, “meu conselho é aquilo que eu faço. A construção de um processo coletivo. É ter a noção daquilo que precisa de facto, não tu, mas o todo, e fazer a luta. Não se vender, não se render e lutar com coragem. Tem que enfrentar forças policiais, políticos que destroem o movimento. Enfrentar, resistir e persistir” resume Juliano  “Se fizer isso, vai longe, mas tem que construir com o coletivo, as pessoas têm que entender que a luta é coletiva. Um só, dois só, três só não conseguem fazer a luta. Mas cem, duzentos, trezentos conseguem.” Acrescenta ainda que não se deve ter medo de divergir, é preciso aprender a debater.

Com o legado impressionante que a UNICAB conseguiu deixar até agora, são conselhos que todos devemos seguir!

Para conhecer melhor a UNICAB e o seu trabalho incansável pelos vendedores ambulantes, camelôs e feirantes no Brasil, sugerimos que sigam o seu podcast Rádio Ambulante.

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